Mal começou a 68a edição do Festival de Berlim e a correria já tomou conta da programação do dia, a ponto de só agora dar notícias no blog. Então pelo início. Wes Anderson abriu oficialmente a competição ontem com seu Isle of Dogs, Ilha de Cachorros. O diretor americano é queridinho da casa, mas não me empolga muito, como falei anteriormente aqui mesmo. Tem estilo, todo particular é verdade, mas seu cinema me parece ter aquela pátina de excentricidade e não vai muito além disso. A cara de garoto de Anderson me parece resumir tudo, um cinema um tanto infantil. Diverte, é simpático, mas… Há quatro anos ele abriu Berlim com Grande Hotel Budapeste. Agora traz uma animação que tem óbvio a marca de qualidade de suas produções. Cativa de início com a ideia extravagante de um futuro próximo no Japão onde os cães de estimação súbito se tornam inimigos mortais por contagiarem os humanos com uma febre mortal. Não adianta inventarem uma vacina, pois o ditador do país está determinado a se livrar dos animais, mandando todos para uma ilha que serve de aterro sanitário.

Febre e governos impositivos lembram uma situação próxima? Pois não há indício desta vez que Anderson tenha se influenciado pelo Brasil como fez no filme anterior, quando a passagem de Stefan Zweig pela serra fluminense originou um livro no qual o diretor se baseou. Ilha de Cachorros tem muito mais a ver com tragédias mundiais e do próprio Japão, tanto no que diz respeito a coerção por ditaduras como dos perigos ambientais, em citação evidente de Fukushima. Trata-se de querer falar de muita coisa e não querer se aprofundar em nada, recurso palatável para uma platéia que o segue com entusiasmo.

Em seguida, um drama de luta pela liberdade sugeriu que teríamos um bom filme político irlandês, como é do feitio dessa cinematografia, semelhante a 71, que foi exibido logo na sequencia de Grande Hotel Budapeste há alguns anos. Se foi proposta pensada, até deve se louvar, mas Black 47, fora de competição,  não corresponde na qualidade ao similar anterior. Ambos carrregam no título o ano em que se passam as histórias. Em 1971, quando o IRA já está atuante e um jovem soldado inglês esquecido em Belfast busca sobreviver. Volta-se um século antes, e 1847 traz a peste e uma fome devastadora a população do país enquanto a Inglaterra só confisca propriedades e mata os revoltosos. Ali, ou se morre, ou se emigra para a América.  Um desertor irlandês volta para casa e encontra apenas a família do irmão,  mulher e filhos, no momento em que estão sendo expulsos pelos ingleses. Busca vingança, matando cada opressor que liquidou os seus. O filme é levado em pique de western, com o cavaleiro solitário invencível e deixando a “metrópole “de cabelo em pé. Há de início uma força e honra a comandar a câmera, mas situações facilitadoras e inverossímeis põem a proposta a perder. Vale, se tanto, para formar mais peça do quebra-cabeça complexo da dominação da Irlanda.

Vale a pena inverter a ordem das sessões para tratar de outro filme que segue as pegadas do faroeste, mas as trai ainda mais que Black 47. Isso porque Damsel trabalha, por assim dizer, no universo clássico do gênero, na época e território em que se consolidou.  O filme traz uma outra dupla de diretores irmãos, David e Nathan Zellner, que em projeto anterior, Kumiko, homenagearam o Fargo dos Coen. Agora estão melhores de elenco, com Robert Pattinson e Mia Wasikowska, além deles mesmo em papéis chave. Pattinson busca recuperar o amor de sua vida, papel de Mia, das mãos de outro. Leva na empreitada um padre para já celebrar o casamento depois de matar o rival. As coisas não saem como previstas e o plano degringola. Desde o início, com uma espirituosa conversa numa parada erma da diligência, o filme se coloca no registro entre o absurdo e o humor negro. Mas não se sustenta em nenhum deles e ainda perde o timing da resolução.

Sem falsificação

Por fim, a melhor atração desses dois dias na competitiva vem do  “ìnvisível“ Paraguai. Foi assim que o diretor Marcelo Martinessi e seu maravilhoso elenco feminino qualificaram na coletiva o pouco destaque, a pouca atenção, que o país tem entre seus pares latinos. Isso repercute, sabemos, no cinema. Em uma década, pode-se lembrar dos filmes de Paz Encina, como Hamaca Paraguaya, ou o sucesso, para os padrões locais, de 7 Caixas, espécie de Cidade de Deus na versão guarani. Las Herederas é uma soma muito digna a esse lote restrito. Filme de sensibilidade feminina, diriam os mais apressados, apenas que temos um homem na direção que soube se cercar do talento de suas colaboradoras. Ele buscou atrizes que tivessem alguma relação de história pessoal com as personagens. Ana Brun chegou a chorar ao tentar responder uma pergunta e depois foi sintética ao dizer que aquela é sua história, sua vida, e que não diriam mais nada. E que vida é essa? Chela, sua personagem, é uma das herdeiras do título que vive com uma companheira numa casa outrora elegante. Agora, na faixa dos sessenta anos, a decadência e a falta de dinheiro obrigam a se desfazer dos objetos de família. Não basta para cobrir a dívida e sua parceira vai para a cadeia, num processo movido pelo Estado. Enquanto aguarda sua soltura, Chela serve de motorista informal as antigas amigas, na verdade demais herdeiras que vivem da aparência de um tempo já exaurido. Esse tempo era o da ditadura, do governo do  general Stroessner que os brasileiros conhecem tão bem, pois veio se exilar aqui depois que seu governo caiu. Essas mulheres como Chela foram de uma geração reprimida, que ficaram desestruturadas, a deriva, depois do fim de uma época. Chela é depressiva e ao conhecer uma jovem liberada tenta reaver um tico de felicidade. Martinessi trabalha temas difíceis, como a noção de classe, representada no antagonismo da empregada de origem indígena, a politica e a sexualidade. Tudo com uma delicadeza rara e em sintonia com colegas, aí sim muito visível, dos vizinhos Chile, Peru e Argentina, como Sebastian Lélio, Joana Lombardi e Lucrecia Martel.

 

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