No meio da correria entre os filmes da competição e outros da paralela, tenho tentando ao máximo encaixar os nossos representantes. Até aqui a conta foi boa. Vi três brasileiros, no que podemos chamar de documentários. Ou não? Por certo sim o de Marcelo Gomes, com seu poético título ‘Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar’. E claro que a canção de Chico Buarque está presente, ao final, e pelo que entendi nos créditos interpretada pelo grupo Grivo. Pernambucano do agreste, Gomes esteve na Berlinale há dois anos com o belo ‘Joaquim’, então na competição. Agora apresentou no Panorama um cativante retrato da cidade onde nasceu, Toritama, que não era mas se tornou a capital do jeans. A facção, como se chama a produção de roupa, movimenta o local em oficinas improvisadas de garagem. Os turnos diários sobre a máquina de costura para homens e mulheres não duram menos que doze horas.

Surgem personagens que como todos ali sonham em ficar ricos, mas Gomes escolhe um ou dois para um registro mais aprofundado. Um documentário, como se sabe, ganha bastante quando são figuras ricas no falar, no se expressar. E o título, afinal? Se o dinheiro da venda das peças não for o bastante, os moradores vendem o que tem, eletrodomésticos, objetos de todo tipo, e partem para as únicas férias do ano na praia, e claro, durante o Carnaval. No Q&A na sequência da sessão, houve quem pedisse vozes mais críticas ao trabalho insano dos moradores, da percepção equivocada de entregar sua vida ao ofício na busca pelo ouro. Gomes não questiona, abre a câmera para mostrar o sonho de seus conterrâneos. Me parece que o recado é claro e se trata das possibilidades de sobrevivência fora dos grandes centros urbanos. Outro pernambucano, Gabriel Mascaro – presente aqui com a ficção Divino Amor, que pretendo recuperar até o final da Berlinale – é lembrado nos agradecimentos e creio que tem a ver com uma passagem de Boi Neon na mesma Toritama que faz fama pelo jeans.

Reflito sobre o formato documental mais tradicional em função sobretudo do filme de Helvécio Marins Jr. Querência justifica seu título pelo amor à terra dos peões boiadeiros do interior mineiro. Trabalhadores de fazendas, eles alcançam seu triunfo quando entram em cena nos rodeios, vestidos à caráter. Ali a terra treme, anuncia um grande neon, e não por acaso vem a lembrança dos pescadores de dura lida no filme de estréia de Visconti. Um vaqueiro que busca fama como locutor serve de linha condutora também para uma questão maior. Roubos de gado acontecem com frequencia na região e Marins encena tomadas noturnas para dar conta da falta de segurança e medo dos trabalhadores. A encenação também se mostra nas situações do vaqueiro com seus colegas e com a irmã que vem da capital para visitar e não pretende mais voltar a morar ali. Difícil também não recordar nas falas e no jeito do expressar local de Guimarães Rosa, grande representante na nossa literatura do mundo do aboio e seus vaqueiros.

E por fim, não vi nada até agora tão desconcertante quanto ‘A Rosa Azul de Novalis’, parceria de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro. O que não quer dizer que a sensação seja aqui uma qualidade, embora devo reconhecer que em muitos pontos o breve (são 70 minutos) registro sobre Marcelo evolui para momentos bem interessantes e, digamos, radicais. Abre com o rapaz nu, de costas, e a imagem do que ele chamará de deus, e que tenho que dizer vem a ser seu cu, se repetirá em outro momento. Os diretores não podam os desejos mais eróticos, pornográficos mesmo, de seu protagonista, incluída uma felação explícita com direito a chuva de prata. Bem, esse é o saldo apelativo do filme para quem quiser ver assim. A proposta é também despir o rapaz em outro conceito. Gay soropositivo, Marcelo fala a câmera de suas memórias familiares, nas quais entram um pai dominador, incesto e uma morte precoce, e sua visão atual de mundo, sexo, relações etc. Articulado, mostra-se culto e admirador de música e literatura, incluindo a do poeta romântico alemão Novalis e sua obsessão por uma rosa azul, e por aqui, de Hilda Hilst. Tudo muito fiel a um jeito de ser. Não se sai do filme, por certo, indiferente.

Imagens encenadas e um  acompanham

 

 

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