Leão de Ouro para Lav Diaz!

Leão de Ouro melhor filme – The Woman Who Left, de Lav Diaz

Grande Prêmio do Júri – The Nocturnal Animals, de Tom Ford

Prêmio de melhor diretor ex-aequo – Amat Escalante, por La Región Salvaje, e Andrei Konchalovsky, por Paradise

Prêmio de melhor roteiro – Noah Oppenheim, por Jackie

Prêmio de melhor ator – Oscar Martínez, por El Ciudadano Ilustre

Prêmio de melhor atriz – Emma Stone, por La La Land

Prêmio Especial do Júri – The Bad Batch, de Ana Lily Amirpour

Prêmio de revelação intérprete Marcelo Mastroianni – Paula Beer, por Frantz

 

Kusturica fecha a competição com as imagens mais impactantes do festival

Não se pode dizer que seja um ótimo filme, nem o melhor da seleção. Mas On the Milk Road, apresentado esta manhã, tem seguramente as cenas mais belas e notáveis desta não muito animadora 73 edição de Veneza. Ponto para a decisão de exibir o filme do sérvio Emir Kusturica no último dia da competição. O filme gera uma espécie de enlevo que cai bem ao esforço final, quando os jornalistas, aqueles que ainda permaneceram no Lido e não voaram para Toronto se diga, já estão cansados e pouco dispostos a desafios. Isso não é propriamente o que Kusturica nos pede, pois quem viu os primeiros filmes do diretor reconhecerá que ele fez um pastiche de si mesmo, com a fantasia e extravagância peculiares. Mas ainda sim é um cinema que pede total adesão. Ou se não, pode ser incômodo. O registro é sempre acima, muito acima do tom, inclusive no exagero da música todo o tempo no limite do enfado. Mas que imagens! Apenas uma ou duas: Kusturica, também protagonista, e Monica Belucci, no fundo de um rio tentando esconder-se dos trogloditas armados que a buscam; ou ainda quando os amantes voam, literalmente, de uma árvore para escapar dos mesmos perseguidores. Há outras, mas vale a pena manter o mistério. Quem sabe a Mostra de São Paulo não apresenta o filme, e com a presença do diretor, que nos deve um filme sobre Pelé para nos vingar do que fez sobre Maradona . E do que o argentino disse sobre o colega há alguns anos em Cannes.

O fato é que o novo Kusturica retorna a suas raízes dos Balcãs e fala da guerra, do desejo de escapar do horror e recuperar as tradições do lugar. Como é habitual, põe mais fé nos animais, e eles são muitos e variados no filme, e menos nos homens. A abertura é de perder o fôlego e não me espantaria se tivesse se inspirado em Cidade de Deus.Vocês vão se lembrar que os gansos são um simbolo desde os primeiros filmes do sérvio. Seguem falcões, cobras e até um urso. Exceto uma cena com uma serpente que se enrola no corpo dos atores, todos os demais bichos são verdadeiros. Na coletiva, Kusturica contou que permaneceu próximo do urso cinco anos para que se acostumasse com sua presença.

Ele, como Lav Diaz, são realizadores que impõem sua marca, goste-se ou não. E nada mais contrastante com Kusturica que o realizador filipino. O primeiro é puro exagero, a explosão de vida, o artifício muitas vezes. O segundo o minimalismo, a forma como base. Mas que não dispensa a vida, ainda que dos miseráveis de seu país.As Mulheres que se Foram, numa tradução livre, foi apresentado ontem a noite. São quatro horas de duração, um curta;metragem, em se tratando de Lav Diaz, costumamos brincar por aqui. Horácia é uma presidiária que cumpriu trinta anos de prisão quando é libertada. Outra detenta confessou o crime pelo qual ela foi condenada. Ela então vai reencontrar a filha, buscar um filho que há muito sumiu, e em especial, quer vingar o homem que a mandou para a cadeia. A mulher conhece tipos sociais a margem, um vendedor ambulante, um travesti que se prostitui e é com frequencia espancado. O planejamento de Horácia  é cuidadoso e Diaz tira proveito do vagar de seu cinema para cada passo da vingança. E que planos! No seu particular preto e branco, a câmera fixa forma belos enquadramentos em que os atores se movem e tem todo o tempo para se expressar. É um cinema refinado, nem para todos, e a sala já vazia na reta final do festival perdeu ainda mais platéia. Poucos resistiram. Os que ficaram tiveram uma demonstração de um cinema na contramão do que prega o cânone hollywoodiano.

Maestro Olmi, Oswaldo Vigas, Konchalovsky, Loznitsa…e o resto

Pela quantidade de nomes citados acima vocês podem perceber que a agenda foi cheia. Começando pelo mais recente: um documentário modesto em média metragem sobre Ermanno Olmi. Modesto na feitura, uma conversa entre um crítico local e o grande realizado italiano octogenário. Aliás, ele está mais bem disposto do que quando esteve aqui há alguns anos mostrando Il Villagio dei Cartone. Talvez o filme tenha sido exibido na Mostra de São Paulo, não me lembro, mas seu mais recente filme Os Campos Voltarão entrou em circuito há pouco no Brasil. Olmi fala de poesia, da técnica que utiliza pensando como um carpinteiro que certa vez conheceu para realizar um de seus filmes e o inspirou com o pouco dinheiro quando do início no ofício. Ou que de certa forma dura até agora. Conta que  um dia encontrou Fellini que lhe mostrou um cheque polpudo para fazer seu próximo filme. O fotógrafo Giuseppe Rotunno fazia sinais atrás dele dizendo que era mentira. O dinheiro não existia, mas Fellini ficava constrangido de que ninguém lhe desse mais dinheiro para filmar. Mentia, então. Olmi se envergonha da Itália que não reconhece seus mestres. Mas segue, filmando, e quer realizar, com ajuda de um amigo que também fez Os Campos Voltarão, um projeto sobre a imigração italiana a Nova Caledônia.

Foi um dia de memórias. Lorenzo Vigas, que ganhou o Leão do Ouro ano passado, voltou ao Lido para apresentar um documentário sobre o pai. Apenas um flash: Chiara Mastroianni, que está no juri com Vigas, chorava copiosamente ao final. E ainda Konchalovski e Losnitza sobre nazismo, mas em filmes fortissimos. E mais um italiano descartável. Volto para comentar tudo com mais calma. Agora vou a Lav Diaz. Fez um filme curto. Quatro horas! até

 

O refinamento de Brizé e… canibais!

Durou algumas horas, com uma apertada noite de sono no meio, a sensação de bem estar e beleza produzida por Une Vie, o concorrente francês exibido ontem à noite. O filme é de Stephane Brizé, de quem vimos faz pouco no Brasil O Valor de um Homem, ou La Loi du Marché. Sabia que era um filme de época mas não que se tratava de uma adaptação de Maupassant. Me perguntava o que o diretor de tramas tão contemporâneas ligadas ao questionamento da dureza do jogo do capital e como ele descarta vidas iria fazer com um material desses. Não só nos dá um belo filme no sentido mais clássico da expressão, ainda que convenção não caiba aqui de todo, como Brizé, sim, dialogo com o presente. E isso, a meu ver, passa pelo dinheiro. O drama é sombrio, sólido, preciso, como o realizador costuma fazer. Acompanhamos a vida de uma jovem do momento em que se casa com um rapaz de finanças modestas até a chegada um tanto atribulada de um neto. Essa trajetória está longe de ser solar, feliz, embora surjam momentos assim. O marido a trai, até mesmo com a empregada, que engravida. O filho, já adulto, gasta a fortuna da família de proprietários de fazenda. Deixa a quase na miséria. Brizé filma no formato quadrado de tela, como se atentasse aos limites da vida de sua protagonista. Nunca a mostra de frente, sempre de perfil, deixando ao espectador imaginar suas reações, expressões.

Foi uma lufada de sofisticação num festival que aderna entre certa sensibilidade e o mau gosto. E este ressurgiu no thriller de canibais The Bad Batch na sessão matutina. Nem é preciso citar o que a diretora Ana Lilly Amirpour nos obriga a ver, mas puxar pelo grotesco não é o pior. Sua óbvia e muito pobre metáfora de sociedades declinadas e obrigadas a sobreviver nas condições mais sórdidas no deserto não parece encontrar lugar nem na tradição dos filmes de horror B.

Veneza e um objeto não identificado chamado Escalante

Em post anterior comentei Arrival, o filme americano (mais um) sobre extraterrestres que invadem a Terra. Toda vez que assisto novas incursões ao gênero fico na expectativa de como vão apresentar esses visitantes de outro planeta. Que bicho nos morderá? Na verdade preferia que não os mostrassem, isso sempre gera desaponto e é um dos problemas que tenho com os filmes de Shyamalan, seja quando fala de ETs ou fantasmas. Quero dizer que muitas vezes, se se quer ficar no registro sério, melhor manter o mistério. É o que se pode questionar também no novo filme de Amat Escalante, La Región Salvaje, exibido ontem à noite na competição. Um ovni, no sentido de quebra total dos parâmetros mais ou menos realistas, ou naturalistas, que se viu até agora. Não falo apenas de proposta de linguagem. Para isto até tivemos um ou outro título estranho as padrões americanizados desta seleção. O filme de Wim Wenders, por exemplo, Les Beaux Jours d’Aranjuez, em que dois atores dão vida em longos diálogos a nova criação de um escritor. Ou mesmo o chileno El Cristo Ciego, no credo de um rapaz em poder realizar milagres no deserto chileno.Escalante vai além e dá forma a estranheza, ao fantástico, num ser monstruoso que oferece prazer mas também dor e no limite morte.

Acontece que o filme não se estrutura de todo nesse registro fantástico. Há também o drama realista e quem viu Heli, o filme que  consagrou Escalante em Cannes há três anos e lhe deu o prêmio de melhor diretor, sabe que o diretor não poupa esforços para representar a violência em seu país. Ele nasceu em Barcelona mas faz seu cinema no México. Nada mais natural que use a vocação daquela cultura para contrabalançar a dura realidade de certo estrato social e crenças num plano, digamos, sobrenatural. A primeira habilidade está muito bem explorada no contexto de uma família de classe média que guarda seus segredos. Um jovem enfermeiro gay mantém caso com o cunhado, pai de dois filhos. Quando conhece uma garota no hospital, esta o leva para conhecer o ser a quem devota paixão e dependência. O mesmo mistério acolherá sua irmã e assim se mantém em boa parte do filme. Lembra Reygadas, o diretor mexicano que assume a estranheza e a falta de sentido como matéria prima. Escalante quer assumir, isso sim, o risco de conduzir dois registros antípodas. É corajoso, mas pode não funcionar, e em certo momento a coisa mesmo degringola.

O que não significa necessariamente o comprometimento de todo o filme. Na saída do cinema, depois da platéia dividida entre poucos aplausos, algumas vaias e muita indiferença, se formaram várias rodas de discussão. Algumas seguiram nos jantares. Mas a sala vazia da coletiva de imprensa hoje de manhã significava algo. Pena porque se Escalante não é, nem nunca foi, o mais entusiasmado em comentar seus filmes, deu boas pistas e fez defesa honrosa de suas escolhas. Adora Zulawski e Possessão foi referência para a região selvagem que ele explora. E sabemos que o título não é apenas literal e diz muito mais de distúrbios de comportamento. Para ele, a realidade oferece situações que a ficção convencional não consegue mais dar conta e é preciso lançar mão da fantasia. Não é proposta fácil, mas estamos aqui em um festival para isso, sermos desafiados. E no caso de Escalante o desafio vem na forma de vários tentáculos perturbadores.

A representação italiana

É o oposto da impertinência de Escalante os filmes italianos exibidos depois da produção para TV de Paolo Sorrentino. O diretor de A Grande Beleza mostrou dois dos dez episódios de The Young Pope, e seu impertinente Papa, o primeiro americano a ser eleito, deve incomodar mais a certa crítica que não compreende a veia cínica do realizador como crítica a tal Itália decadente do que o Vaticano. Ainda sim a Santa Sé terá muito a rebater sobre a figura midiática vivida por Jude Law que assume estar ali pelo poder. Afinal é americano e se fez no método self made man. Transita pelo palácio papal como num jogo de plano político, fazendo conchavos, debelando inimigos, e Silvio Orlando está ótimo como o cardeal de maior poder que não tolera os modos irascíveis e indomáveis do recém chegado. Espero que a co-produção HBO, Sky e outros canais no chegue para seguir o divertido contexto de intrigas.

A habilidade de humor cínico de Sorrentino é ainda mais evidente quando se impõe a corrida agenda de um festival um filme de envergadura fraca como Piuma. O título já diz tudo. É leve de deixar o vento levar, como uma pluma, a história de dois namorados adolescentes que detonam a confusão em família quanda a garota engravida. Seguem situações estereotipadas e diálogos histriônicos que só parecem estar numa seleção da qual se espera inovação por algum tipo de interesse entre produtores locais e o comando de Veneza. Já houve coisa pior, é verdade, em se tratando de filmes da casa. Mas isso parecia ter mudado com a volta de Alberto Barbera à direção. Que seja caso único, aliás muito vaiado pelos poucos jornalistas que levantaram cedo para ver o filme de Roan Johnson.

Em outra linguagem, e também em nível um pouco mais apurado, veio o documentário local Spira Mirabilis. Depois de Veneza de certo modo ter inovado ao premiar com o Leão de Ouro Sacro GRA, de Gianfranco Rosi, e Berlim ter seguido na mesma batida com o filme seguinte deste, Fuocoammare, havia certa expectativa em conhecer a proposta da dupla Massimo D’Anolfi  e Martina Parenti. E ela tem seu atrativo, um refinamento, em situações que vão sendo exploradas em paralelo. Há artesões que constróem grandes instrumentos de metal para percurssão, como tambores que se vê sendo tocados nas ruas das capitais européias. Em outro quadro, um cientista japonês estuda minúsculos seres do mar que saberemos serem medusas imortais, enquanto se acompanha ainda o restauro eterno do Duomo de Milão, ou ainda se houve uma voz feminina em francês narrar num cinema abandonado texto famoso de Borges sobre a imortalidade. No curso do filme não se explica o contexto de cada quadro e saberemos das intenções apenas ao final. São duas horas de duração e se exige empenho nem sempre recompensado. Pelo tratamento gráfico e imagens bonitas, com diálogos raros e mais no momento final, nota se certa semelhança com o cinema de Rosi. O que não é exatamente um ponto favorável porque este também tem momentos desequilibrados em seu cinema.

 

Um prêmio para o Nobel

A escrita simples pode ser perturbadora. Com esse ensinamento, o protagonista de El Ciudadano Ilustre, ou o cidadão ilustre, estimula um jovem a continuar escrevendo. Ele também é escritor, mas já está em outra esfera. Daniel Mantovani é um Prêmio Nobel e o vemos recebendo o título em Estocolmo logo na abertura do filme argentino. Foi o competidor exibido esta manhã e o pensamento de Mantovani ao novato pode ser transferido ao longa da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn. Tem essa simplicidade de que fala o autor, mas busca tocar em coisas mais complexas. Apenas que no registro bem-humorado, leve, essas qualidades que já se tornaram recorrrente dizer que faltam ao cinema brasileiro. A platéia de jornalistas parece ter concordado e acolheu muito bem o filme.

Depois de dar de costas a realeza sueca e proferir discurso cínico a sua escolha, o novo Nobel volta a seu cotidiano em Barcelona cheio de compromissos que não o permitem se dedicar a escrever. Há  também uma crise pessoal, criativa se se quiser, e um convite o pega no contrapé. O pequeno vilarejo argentino onde nasceu quer homenageá-lo e pede sua presença com a agenda de praxe. Daniel aceita e logo a enorme diferença de mundo se impõe, a partir do motorista bonachão que o acompanha até a cidadezinha. Na sequência vem os discursos, fotos com o prefeito e a miss local,  desfile no carro de bombeiros, palestras e até um júri em concurso de pintura… Mas com a visita também reaparecem amizades e um antigo amor, aliás associado ao melhor amigo, que conta de modo jocoso a Daniel que acabou por casar com sua antiga namorada. A angústia vai aumentando, assim como o rancor de alguns moradores pelo escritor ter construído sua respeitada literatura em cima de uma noção crítica e desdenhosa do jeito local de ser, ou seja, provinciano.

Na boa conferência de imprensa, os diretores responderam a uma questão sobre essa angústia e um tom de melancolia ser um reflexo crítico de certa decadência de valores e orgulho argentino. E que em muito a saída de Daniel de seu “pueblo” quatro décadas antes não se dá apenas pela necessidade de conquistar  espaço para sua escrita, mas também rememora o período duro da ditadura argentina, uma das mais ferozes na América Latina como se sabe. Não é um retrato político no sentido mais aprofundado da palavra. Mas basta pouco, um olhar, uma conversa atravessada ou um gesto de solidariedade de um morador para se formar a visão de um povo. Isto o roteiro de Andrés Duprat constrói engenhosamente, com humor amargo as vezes, e com a colaboração essencial do ator Oscar Martínez. Vimos ele faz pouco no Brasil como o pai de Paulina, do filme homônimo, e está no elenco de Koblic, previsto para estrear por aí dia 15. Não será surpresa se pouco antes, no dia 10, ele sair daqui do Lido com o prêmio de melhor ator.

 

Ozon (e Lubitsch) sobe o nível, mas…

Apenas uma passada rápida no blog, pois hoje é dia corrido, para dizer que gostei muito do novo François Ozon, Frantz, exibido ontem à noite na competição. Sou entusiasta do diretor francês, mas não é sempre que ele acerta. O que me surpreende é como ele pode mudar o registro, a época e talvez mesmo o sentido de seus dramas… Há tudo neste Frantz. É o nome do jovem alemão, não mais de 25  anos, que morre no front da Primeira Guerra. Mas só saberemos disso, e mal o vemos, quando outro jovem, desta vez francês e portanto inimigo, procura a família do rapaz e sua noiva alegando ter sido um grande amigo. Na verdade, esta é uma primeira mentira. Haverá outras. Mas a angústia e o medo de trazer os fatos a tona dão início a alguns mal entendidos. É um filme elegante, a maior parte em preto e branco, e a cor só vem nos momentos, poucos, felizes. Me impressiona que o roteiro é do próprio Ozon, e isso tem sido raro nos filmes aqui, a maioria adaptados de livros. O diretor faz uma releitura do filme de Lubitsch, de 1931, Broken Lullaby, que no Brasil se chama Não Matarás. Pode não ser uma história das mais originais, mas é bem articulada e nos absorve. Tudo isso com um elenco desconhecido, mas muito bom.

Comento depois com mais calma O Jovem Papa, de Sorrentino, que seus detratores não vão gostar, mas eu sim, gostei, e Brimstone, outro americano não menos questionável do que já vimos aqui. Até

 

Abrindo os trabalhos em Veneza. Sem a vanguarda

Seria mais animador para um primeiro post do novo blog falar de cinema, do bom cinema, do cinema que estimula, nos abre novas persectivas. Mas até agora a melhor perspectiva ainda é aquela da vista magnífica de Veneza a partir do Lido, o endereço do festival de cinema que está entre os três principais do mundo, ao lado de Cannes e Berlim. Mas enquanto estes dois criaram fama e uma marca pessoal, e o francês assimilou tudo isso e algo além para se tornar a vitrine mais disputada, Veneza me parece cada vez mais a deriva do que deve ser uma mostra empenhada na busca pelo diferencial. Estamos no terceiro dia da competição da 73a edição e o cenário da tela não incita tanto quanto o da laguna. A ponto de um jornalista, ao final de uma das sessões, gritar em língua espanhola: “Basta! Queremos filmes de vanguarda!”

Certo que descontentamento também é questão de ponto de vista. Para quem veio atrás das estrelas, de um cinema de badalação e Hollywood não faltou bom cardápio. Começou com La La Land, musical que para uma abertura não está mal, tem o tom ligeiro e despretensioso para abrir o apetite. Também elenco conhecido, Emma Stone e Ryan Gosling à frente. Gosling não veio porque está envolvido com Blade Runner 2. A ideia de um casal que numa Los Angeles atual mas retrô busca o sonho americano, ela como atriz, ele como músico de jazz, e por ele acaba por se separar, tem pontos de contato com o Woody Allen de Café Society. Mas não a ironia deste. Entretem, é bem realizado, porém o diretor Damien Chazelle foi mais interessante em Whiplash.

O questionável sobretudo é incluir um filme sem maiores pretensões como La La Land na competição. Bem, ao menos até o momento em que começaram a surgir os títulos seguintes. E mais Estados Unidos. The Light Between Oceans sugere já na estrutura do título O Lugar Onde Tudo Termina, do mesmo diretor Derek Cianfrance. E o trocadilho agora seria que o farol a que se refere o título original é o lugar onde tudo começa para as personagens de Michael Fassbender e Alicia Vikander, esta melhor atriz coadjuvante no Oscar deste ano por A Garota Dinamarquesa e no elenco de Jason Bourne. De volta da Primeira Guerra, Fassbender aceita posto solitário numa ilha isolada da Austrália como faroleiro. Antes conhece a filha do seu superior, casam-se e ela o acompanha. Engravida duas vezes, mas perde os bebês ainda na gestação. Um bote então encalha na praia trazendo o cadáver do pai e uma recém-nascida. O casal, em vez de denunciar o fato, decide ficar com a criança. Como se espera, a felicidade familiar tem seu destino podado. A confirmação da expectativa não é o maior dos problemas aqui. Falta pulsão e orginalidade ao drama, que se pode classificar de filme de qualidade, com boa produção, fotografia, enfim, tudo no lugar. E nada além disso.

Não é muito mais do que se pode dizer dos competidores americanos seguintes. Sim, há muitos deles, enquanto brasileiros que conhecemos de melhor estatura ficaram de fora. Não só da competição, mas de toda seleção. Isso nunca foi exatamente uma surpresa com Alberto Barbera na direção de Veneza, e se tanto cabia a paralela Horizonte saudar algumas produções nossas, como foi o caso de Boi Neon no ano passado. Parece que somos nós os aliens em Veneza, mas se fosse assim teríamos alguma chance pois Arrival, de Denis Villeneuve, os trouxe de volta sem o menor constrangimento. Palavra mais uma vez subjetiva, claro. O canadense Villeneuve não me anima em nada, ainda que Sicario pode ser incluído em certo grau de complacência entre os thrillers de gênero masculino liderado por uma mulher. Agora se dá o mesmo quando a respeitada linguista Amy Adams é requisitada pelo governo para decifrar o que querem os alienígenas recém chegados. A moça ainda tem a habilidade de prever o futuro e o seu não evita alguns dramas pessoais.

Exatamente como ela não pode fazer no filme de Tom Ford, Nocturnal Animals. O badalado estilista volta ao Lido depois de estrear aqui, e no cinema, com Direito de Amar, A Single Man, e há similaridades entre os dois filmes. Lá era Julianne Moore a ruiva escolhida para protagonista e Adams a lembra em muito como a mulher que fez a escolha errada na vida. E só percebe o erro quando o passado vem numa espécie de vingança. O mundo bonito e de gente bonita e, claro, bem vestida, tem aqui uma tentativa de revisão ao se conduzir a trama para um ambiente degenerado do Texas, estado natal de Ford, onde se dá o pesadelo para Jake Gyllenhall, sua filha e mulher. Violência, estupro, assassinato e sangue, porém, não são elementos certeiros para garantir o interesse de uma trama já muito reconhecível. Fora o ar artificial e vazio das questões, digamos, existenciais dos personagens. Esperemos que o vazio comece a ser preenchido daqui a pouco com François Ozon, que me parece sempre interessante mesmo quando menos original, e o que vem ainda pela frente.