Em post anterior comentei Arrival, o filme americano (mais um) sobre extraterrestres que invadem a Terra. Toda vez que assisto novas incursões ao gênero fico na expectativa de como vão apresentar esses visitantes de outro planeta. Que bicho nos morderá? Na verdade preferia que não os mostrassem, isso sempre gera desaponto e é um dos problemas que tenho com os filmes de Shyamalan, seja quando fala de ETs ou fantasmas. Quero dizer que muitas vezes, se se quer ficar no registro sério, melhor manter o mistério. É o que se pode questionar também no novo filme de Amat Escalante, La Región Salvaje, exibido ontem à noite na competição. Um ovni, no sentido de quebra total dos parâmetros mais ou menos realistas, ou naturalistas, que se viu até agora. Não falo apenas de proposta de linguagem. Para isto até tivemos um ou outro título estranho as padrões americanizados desta seleção. O filme de Wim Wenders, por exemplo, Les Beaux Jours d’Aranjuez, em que dois atores dão vida em longos diálogos a nova criação de um escritor. Ou mesmo o chileno El Cristo Ciego, no credo de um rapaz em poder realizar milagres no deserto chileno.Escalante vai além e dá forma a estranheza, ao fantástico, num ser monstruoso que oferece prazer mas também dor e no limite morte.
Acontece que o filme não se estrutura de todo nesse registro fantástico. Há também o drama realista e quem viu Heli, o filme que consagrou Escalante em Cannes há três anos e lhe deu o prêmio de melhor diretor, sabe que o diretor não poupa esforços para representar a violência em seu país. Ele nasceu em Barcelona mas faz seu cinema no México. Nada mais natural que use a vocação daquela cultura para contrabalançar a dura realidade de certo estrato social e crenças num plano, digamos, sobrenatural. A primeira habilidade está muito bem explorada no contexto de uma família de classe média que guarda seus segredos. Um jovem enfermeiro gay mantém caso com o cunhado, pai de dois filhos. Quando conhece uma garota no hospital, esta o leva para conhecer o ser a quem devota paixão e dependência. O mesmo mistério acolherá sua irmã e assim se mantém em boa parte do filme. Lembra Reygadas, o diretor mexicano que assume a estranheza e a falta de sentido como matéria prima. Escalante quer assumir, isso sim, o risco de conduzir dois registros antípodas. É corajoso, mas pode não funcionar, e em certo momento a coisa mesmo degringola.
O que não significa necessariamente o comprometimento de todo o filme. Na saída do cinema, depois da platéia dividida entre poucos aplausos, algumas vaias e muita indiferença, se formaram várias rodas de discussão. Algumas seguiram nos jantares. Mas a sala vazia da coletiva de imprensa hoje de manhã significava algo. Pena porque se Escalante não é, nem nunca foi, o mais entusiasmado em comentar seus filmes, deu boas pistas e fez defesa honrosa de suas escolhas. Adora Zulawski e Possessão foi referência para a região selvagem que ele explora. E sabemos que o título não é apenas literal e diz muito mais de distúrbios de comportamento. Para ele, a realidade oferece situações que a ficção convencional não consegue mais dar conta e é preciso lançar mão da fantasia. Não é proposta fácil, mas estamos aqui em um festival para isso, sermos desafiados. E no caso de Escalante o desafio vem na forma de vários tentáculos perturbadores.
A representação italiana
É o oposto da impertinência de Escalante os filmes italianos exibidos depois da produção para TV de Paolo Sorrentino. O diretor de A Grande Beleza mostrou dois dos dez episódios de The Young Pope, e seu impertinente Papa, o primeiro americano a ser eleito, deve incomodar mais a certa crítica que não compreende a veia cínica do realizador como crítica a tal Itália decadente do que o Vaticano. Ainda sim a Santa Sé terá muito a rebater sobre a figura midiática vivida por Jude Law que assume estar ali pelo poder. Afinal é americano e se fez no método self made man. Transita pelo palácio papal como num jogo de plano político, fazendo conchavos, debelando inimigos, e Silvio Orlando está ótimo como o cardeal de maior poder que não tolera os modos irascíveis e indomáveis do recém chegado. Espero que a co-produção HBO, Sky e outros canais no chegue para seguir o divertido contexto de intrigas.
A habilidade de humor cínico de Sorrentino é ainda mais evidente quando se impõe a corrida agenda de um festival um filme de envergadura fraca como Piuma. O título já diz tudo. É leve de deixar o vento levar, como uma pluma, a história de dois namorados adolescentes que detonam a confusão em família quanda a garota engravida. Seguem situações estereotipadas e diálogos histriônicos que só parecem estar numa seleção da qual se espera inovação por algum tipo de interesse entre produtores locais e o comando de Veneza. Já houve coisa pior, é verdade, em se tratando de filmes da casa. Mas isso parecia ter mudado com a volta de Alberto Barbera à direção. Que seja caso único, aliás muito vaiado pelos poucos jornalistas que levantaram cedo para ver o filme de Roan Johnson.
Em outra linguagem, e também em nível um pouco mais apurado, veio o documentário local Spira Mirabilis. Depois de Veneza de certo modo ter inovado ao premiar com o Leão de Ouro Sacro GRA, de Gianfranco Rosi, e Berlim ter seguido na mesma batida com o filme seguinte deste, Fuocoammare, havia certa expectativa em conhecer a proposta da dupla Massimo D’Anolfi e Martina Parenti. E ela tem seu atrativo, um refinamento, em situações que vão sendo exploradas em paralelo. Há artesões que constróem grandes instrumentos de metal para percurssão, como tambores que se vê sendo tocados nas ruas das capitais européias. Em outro quadro, um cientista japonês estuda minúsculos seres do mar que saberemos serem medusas imortais, enquanto se acompanha ainda o restauro eterno do Duomo de Milão, ou ainda se houve uma voz feminina em francês narrar num cinema abandonado texto famoso de Borges sobre a imortalidade. No curso do filme não se explica o contexto de cada quadro e saberemos das intenções apenas ao final. São duas horas de duração e se exige empenho nem sempre recompensado. Pelo tratamento gráfico e imagens bonitas, com diálogos raros e mais no momento final, nota se certa semelhança com o cinema de Rosi. O que não é exatamente um ponto favorável porque este também tem momentos desequilibrados em seu cinema.