Ao apresentar “Meu Nome É Daniel” na segunda noite competitiva da Mostra de Gostoso, o montador Vinicius Nascimento lembrou que o documentário põe em xeque o conceito da normatividade, ou seja, do que se considera normal. No caso, trata-se de uma deficiência congênita que a medicina não soube, pelo menos até agora, diagnosticar e faz do jovem Daniel de Castro Gonçalves ter limitações de movimento, de fala e de  expressão. Aos 34 anos, nascido na classe média fluminense, com poder aquisitivo suficiente para se tratar, apoio e dedicação incondicional da mãe, ele não aceita o olhar piedoso e preconceituoso da sociedade. É o primeiro a reverter essa visão com auto-ironia, articulação, inteligência e até algum humor cinico que transfere a direção do filme. Logo no inicio, com o uso de imagens familiares de vídeo, ele relembra quando, criança, numa apresentação infantil fantasiado de minhoca, rebateu um comentário de `tadinho’ ouvido de um espectador com um malcriado ‘tadinho ‘é o caralho!`

O filme é esse relato em primeira pessoa que busca rever uma trajetória muito particular mas também apontar que o conceito de normal/anormal é  bastante relativo. Como se testemunha em situações das mais diversas, Daniel vive uma rotina normal, ou quase. Na primeira tomada, sob protestos da mãe, ele insiste em pela primeira vez sair com o carro da garagem onde mora. Garante estar seguro, mas súbito, bate. Bem, quem de nós, certos da habilidade motora, já não fez o mesmo. Nesse sentido, o rapaz parece ter muito mais autocrítica e conhecimento de sua condição do que quem se vê como a norma social. O filme, muito cativante e estruturado sem nenhum apelo de indulgência, trabalha nesses polos entre o olhar do outro e aquele que o recusa,  a todo momento nos tirando do espaço de conforto. Estreou ao encerrar o mais recente Olhar de Cinema de Curitiba com uma platéia que respondeu com entusiasmo a proposta, e em especial por conhecer o protagonista, que neste momento defende sua cria no festival de documentários de Amsterdã. Se o filme e seu protagonista são especiais, é somente no sentido de uma superioridade na análise de um tema sobre o qual ainda se tem muito a refletir.

Em outra vertente, a identitária quanto a sexualidade mas não apenas ela, pode-se incluir a protagonista que Bruna Laboissiere nos traz em seu documentário na mesma questão do que é norma social. Fabiana, a personagem-título, ‘é uma motorista de caminhão de perfil distinto do que se pressupõe na categoria. Transexual, relaciona-se com mulheres, embora aqui e ali deixa soltar que exerce sua sexualidade de acordo com situações inesperadas. Inesperado é essa maravilhosa figura conceder a câmera da diretora uma franqueza e honestidade possivel talvez apenas ‘aqueles que não temem nem devem nada a sociedade os condenam. Fala de seus amores, suas dúvidas, inclusive a profissão e ao futuro, entre a cabine do caminhão e em poucas paradas da viagem pelas estradas. Há de se insistir um pouco nessa toada por vezes de quebras narrativas, conversas entrecortadas, um registro que demora a criar empatia, mas que resulta a serviço de bem maior que ‘e conhecer Fabiana.

Bem mais enxuto e direto ‘é o curta ”Catadora de Gente”. A gaúcha Mirela Kruel “fecha” sua câmera em Maria Tugira Cardoso, catadora de lixo em Uruguaiana que mais uma vez desmonta conceitos do que se possa imaginar sobre esses sobreviventes dos resíduos da sociedade. Articulada, culta, narra como ao ler Machado de Assis e Jorge Amado em livros encontrados no aterro sanitário construiu seu sabe que agora compartilha com colegas numa iniciativa voluntária. Com Daniel e Fabiana, forma o trio de um Brasil que não parece enxergar neles uma resistência ao exílio social.

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